As dimensões do breveMarília Bonna está em algum lugar entre o Rio de Janeiro – onde nasceu – e o Mato Grosso, onde foi criada. Habituada a fronteiras, gosta de estar entre a imaginação e a realidade. Por isso escolheu estudar Literatura, tornando-se mestre em Estudos Literários pela UFMT e leitora inesgotável, continuamente dividida entre aquilo que existe e aquilo que deveria existir. Adotou também o ofício de livreira, que exerce no Sebo Rua Antiga em Cuiabá, fundado por ela e seu companheiro, Thiago Iusso
Eu lembro quando estudei a tradição das crônicas no Brasil, esse gênero de texto que me encanta e que nasceu pra preencher o nada – o espaço vazio dos jornais. Elas apareceram no século XIX, num Brasil antigo, num Brasil mais lento, mas já com medo dos próprios vazios, dos buracos que ia abrindo pelo caminho. Os cronistas de então, Machado de Assis e José de Alencar, por exemplo, receberam a ingrata missão de ocupar esses ermos da página com suas palavras – como se tivessem a capacidade extraordinária de fazer nascerem flores no deserto. Mas acontece que eles tinham.
Foi assim, cercada de anúncios de remédio, de notícias trágicas e considerações sobre política e economia, que nasceu a crônica brasileira – uma ilha de delicadeza, um respiro no ar denso, uma flor súbita no deserto. Precisava ser um texto leve – diziam os editores –, um texto que fizesse os leitores descansarem provisoriamente do desconsolo da vida (os anúncios de remédio, as notícias trágicas, as considerações sobre política e economia), que desse um pouco de esperança, mas não muita: apenas o suficiente pra fazer com que conseguissem terminar, menos tristes, a leitura do jornal. Por isso – repetiam os editores –, tinha que ser um texto breve, não mais que um suspiro, feito para ser esquecido, como o próprio jornal no dia seguinte. Foi dessa exigência que nasceu, inclusive, o nome, “crônica”: nome derivado da palavra grega chronos (tempo), nome de coisa feita pra passar.
Por que estou falando tudo isso? Porque fui convidada para ter uma coluna neste site e isso me soou como um convite para ser uma cronista antiga, para reviver toda uma tradição dos canais de comunicação, iniciada no século XIX e que atravessou o XX e chegou ao XXI, carregando nomes como Machado de Assis, João do Rio, Antônio Maria, Rubem Braga, Clarice Lispector, Paulo Mendes Campos, Nelson Rodrigues, Drummond e, mais recentemente, Luís Fernando Veríssimo, Lygia Fagundes Telles e José Castello e, mais recentemente ainda, Maria Ribeiro, Gregório Duvivier, entre outros. Infinitos: toda essa gente que escreve sobre nada e sobre tudo. Toda essa gente que faz o leitor esquecer, pelo menos um pouco, pelo menos por um momento (o da leitura), das pequenas tragédias cotidianas. Mas não só.
Esses textos, feitos para serem esquecidos, carregam dimensões secretas. Não fosse assim, eu – uma leitora nostálgica em pleno século XXI – não teria passado uma vida de leitura atrás deles, atrás dessas palavras escritas para serem lidas uma única vez, atrás da pequena e efêmera e aguda emoção que eles provocam, e eternamente grata às pessoas que tiveram a ideia de reuni-los, vez ou outra, em edições de livro, para que durassem mais, muito mais, que o tempo do jornal, para que durassem o que merecem e chegassem a leitores como eu – abismados de como as palavras podem alcançar tal profundidade, a de nascerem a partir do nada, da ausência, da falta de assunto (Clarice Lispector escreveu sobre a eternidade depois de refletir a respeito de um chiclete). Que força é essa – que ímpeto, que raiz – faz com que despontem da terra seca, da terra nula, que é o vazio?
Isso tudo pra dizer que essa coluna – que levará o nome deste texto – vai seguir a tradição dos antigos cronistas, a de escrever sobre coisa nenhuma, a de (tentar) plantar flores no ermo – um texto leve (pediriam os editores), um texto passageiro, um texto feito para não durar. Como se o breve não tivesse suas próprias dimensões, insuspeitadas. Como se aquilo que se usa para preencher buracos não tenha de ser necessariamente compatível com a profundidade deles – se for raso, raso; se for fundo, fundo. Tudo é uma questão da dimensão dos vazios – os da página, os da vida. Tudo é uma questão da dimensão dos nossos próprios vazios.
Sensação
Vento
Umidade