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SANTANA
Poesia do Cotidiano

Sofrer em Dó menor

Há certa beleza em ver nosso sofrimento cotidiano, ordinário, traduzido por Chico, Cartola, Dolores, Noel, identificado pela dor do outro, redimido

As dimensões do breve

As dimensões do breveMarília Bonna está em algum lugar entre o Rio de Janeiro – onde nasceu – e o Mato Grosso, onde foi criada. Habituada a fronteiras, gosta de estar entre a imaginação e a realidade. Por isso escolheu estudar Literatura, tornando-se mestre em Estudos Literários pela UFMT e leitora inesgotável, continuamente dividida entre aquilo que existe e aquilo que deveria existir. Adotou também o ofício de livreira, que exerce no Sebo Rua Antiga em Cuiabá, fundado por ela e seu companheiro, Thiago Iusso

16/08/2020 09h35
Por: Marília Bonna
Fonte: Marília Bonna
"O violonista cego", de Pablo Picasso

 

Há alguns anos, eu soube da história de um camelo que chorou ouvindo música. Fiquei quase tão fascinada como quando soube que os polvos, esses animais que se debatem, podem se sentir tão tristes a ponto de perderem a cor e cometerem suicídio, apunhalando-se com o próprio esporão. Saber que certos animais são capazes de tamanha sutileza emocional é espantoso. Mas aqui quero falar sobre os camelos, os camelos que choram. Tudo bem que não é tão difícil imaginar um camelo chorando porque eles talvez sejam os animais mais melancólicos do mundo, com seu fardo eterno, seu pescoço longo demais e o trêmulo lamento que soltam vez ou outra, enquanto caminham, lentos e obstinados. Mas ver um camelo chorando é outra coisa e ver um camelo chorando enquanto escuta música é outra ainda. E, depois de ouvir essa história e ir atrás de saber mais sobre ela, eu vi.

Trata-se de um documentário, meio mongol meio alemão, chamado “Camelos também choram” (2003), que conta a real e triste saga de uma família de nômades do deserto de Góbi para fazer com que sua camela aceite, depois de um parto difícil e doloroso, o filhote albino, raríssimo na região: a mãe mantém distância, evita amamentar e o afasta violentamente se ele procura se aproximar, como se não reconhecesse o que saiu de dentro dela, como se rejeitasse uma parte ignorada de si mesma. Preocupados com a sobrevivência do camelinho albino, os donos tentam de tudo para forçar a aproximação: empurram um contra o outro, amarram a mãe para que ela não possa fugir do bebê ou machucá-lo, e nada adianta. Até que essa família errante, que não possui televisão (o avô a chama de “imagem de vidro”) ou geladeira e vive em tendas no meio do deserto, tem a sensível, fantástica e estranha ideia de mandar trazer o músico da cidade mais próxima, acreditando que – profundamente tocada, como se ela mesma fosse um instrumento – a mãe camelo possa, enfim e através do território mágico, secreto e desconhecido da música, alcançar a dimensão do afeto. E foi assim, hipnotizada na frente dessa fragilíssima imagem de vidro, que eu vi acontecer: sob os melancólicos acordes de um instrumento e da voz monótona do músico, a mãe acolhe a presença e, mais que isso, a existência do filhote. De seus olhos um pouco tristes de camelo, saem lágrimas.

Eu li, num texto de Affonso Romano de Sant’Anna sobre esse mesmo episódio dos camelos, que os antigos usavam a música para acalmar os furiosos e tentar curar a surdez, a hipocondria e a mania de perseguição. Esses curandeiros remotos e sensíveis devem ter se transformado no que hoje conhecemos por musicoterapeutas, que nada mais são que as pessoas que compreenderam que certas coisas poderosas e invisíveis – como os vazios persistentes e os sentimentos inexplicáveis –, que ultrapassam nossa capacidade de entendimento, devem ser tratadas com outras coisas poderosas e invisíveis e que ultrapassam nossa capacidade de entendimento: como a música – esse segredo de harmonia. É preciso, afinal, substituir o vazio hostil e silencioso de uma falta pelo vazio cheio, preenchido, completo, de uma música.

Feito o camelo de Góbi, o camelo que, súbita e inexplicavelmente, ao ouvir a melancólica ladainha do músico no deserto, assimilou a profundidade de sua dor, também nós – homens e mulheres cotidianos, partidos pela saudade, pela indiferença, pela nostalgia – sofremos melhor, como cantou Chico Buarque em “Qualquer Canção”, em Dó menor que em silêncio: como se – atravessada por tristezas outras, de repente traduzida – nossa ferida se reconhecesse e, para usar o trecho de outra música do nosso cancioneiro, “doesse em paz”. Sofrer em Dó menor (dizem que as músicas tristes, em sua maioria, são feitas em tons menores) seria, assim, dividir nossa dor ou saudade ou nostalgia: vê-las, ao menos por um momento, fora de nosso corpo – poder tocá-las, afastá-las, achá-las feias ou bonitas e, por fim, acolhê-las, como se fossem um filhote estranho, albino, estrangeiro, mas que espantosamente saiu de dentro de nós.

E assim chegamos a outro documentário (acho que estou a fim de provar aqui o quanto a realidade pode ser poética), dessa vez brasileiro, que fala sobre tudo isso: não necessariamente sobre camelos que choram ou camelos que choram ouvindo música, mas sobre como lidamos melhor com nossas dores quando elas doem em Dós (como cantou Caetano). Chama-se “As canções” e é o último documentário lançado por Eduardo Coutinho, em 2011, antes de sua trágica e silenciosa morte (ele foi morto enquanto dormia, e a facadas, pelo filho doente), e nada mais é que um compilado de histórias de amor fracassadas, nostalgias de infância, saudades amanhecidas – esses ocos do nosso corpo que, atravessados por algumas vibrações e freqüências, repercutem como as caixas de ressonância de certos instrumentos de corda e são, de repente, capazes de (re) produzir música.

Convocados nas ruas do Rio, através de cartazes que diziam “Alguma música já marcou sua vida? Cante e conte sua história”, os personagens desse filme – que, dos 237 que procuraram o cineasta e dos 42 que tiveram o depoimento gravado, resultaram em 18 – são pessoas comuns: a mulher que, há vinte anos, sofre pelo primeiro namorado; o homem que sente saudade da mãe, ainda viva e bem de saúde; o jovem que transformou o sentimento de culpa em uma música para o pai, que morreu subitamente. É bonito ver nosso sofrimento cotidiano, ordinário, traduzido por Chico, Caetano, Dolores, Cartola Noel, identificado pela dor do outro, redimido. E é essa potencialidade cicatrizante da música o que mais interessa Coutinho em “As canções”. Basta, para isso, perceber que ele escolhe terminar o filme fazendo a uma de suas entrevistadas uma pergunta importante: se estar ali – contando e cantando sua história de amor partida, revolvendo a ferida – ajudava em alguma coisa. Ao que ela – que há pouco cantarolava “Retrato em branco e preto”, de Chico e Tom – responde: “é como fechar essa dor com chave de ouro”.

E é por isso que estou aqui, mexendo em nossas mágoas esquecidas – falando de camelos que choram ao ouvirem seu próprio lamento e de mulheres que exorcizam sentimentos muito resistentes cantando, a meia voz, “o que é que eu posso contra o encanto/desse amor que eu nego tanto,/evito tanto/e que, no entanto,/ volta sempre a enfeitiçar?” –, é por isso que estou aqui, a fim de fechar nossas feridas com chave (ou agulha?) de ouro, a dedilhá-las insistentemente, para que toquem mais em Dó que em dor.  

 

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