As dimensões do breveMarília Bonna está em algum lugar entre o Rio de Janeiro – onde nasceu – e o Mato Grosso, onde foi criada. Habituada a fronteiras, gosta de estar entre a imaginação e a realidade. Por isso escolheu estudar Literatura, tornando-se mestre em Estudos Literários pela UFMT e leitora inesgotável, continuamente dividida entre aquilo que existe e aquilo que deveria existir. Adotou também o ofício de livreira, que exerce no Sebo Rua Antiga em Cuiabá, fundado por ela e seu companheiro, Thiago Iusso
No centro de Cuiabá, há uma casa de moldura e vidro que se chama “Molduras Paris”. Sempre achei que esse nome parecia de alguma loja do século XIX, talvez da Rua do Ouvidor (no Rio antigo), mas é uma loja do século XXI, que – apesar do papel de parede no teto, do banheiro de azulejo e porcelana cor-de-rosa, e desse nome de lugar fora do tempo e do espaço – faz boxes de vidro temperado, como a maior parte das vidraçarias de hoje. Eu não fui até lá para ver boxes, fomos procurar molduras para as aquarelas do Thiago e já estávamos de saída quando uma coisa me chamou atenção: atrás do balcão, pendurado na parede, como uma fotografia, tem um par de mocassins infantis antigos. Eles estão numa moldura-caixa – dessas redomas modernas feitas para proteger do tempo e das mãos objetos muito delicados – e parecem de um menino sem idade, que tanto pode ser dos anos vinte quanto dos oitenta: a única certeza é que são de uma criança que, há muito, não existe mais e que estão ali, em lugar inusitado, como prova irrefutável (não sei se bonita ou dolorosa) de que um dia existiu.
Eu quis, obviamente, saber dos sapatos: dos pequenos sapatos de couro encardido, sapatos de criança remota. E a dona da loja me contou o que vai ser o tema da crônica de hoje: a história de uma mulher que, há mais de dez anos, entrou na “Loja das Molduras Paris” e encomendou uma para esse par de sapatinhos antigos: escolheu, deixou paga e (imagino-a sorrindo ao se despedir) nunca mais voltou para buscar. Sem ter o que fazer com ele, os donos decidiram pendurar ali, na esperança de que, quem sabe um dia, passeando casualmente na calçada e olhando de relance para dentro, essa senhora – arrancada subitamente de sua estranha, repentina e profunda distração – pudesse se lembrar da encomenda e levar com ela os sapatinhos. Até hoje, porém, ninguém apareceu para buscá-los e, sinceramente, fico até com medo de estar escrevendo isso aqui: vai saber se há, entre os leitores, alguém tão apegado a recordações a ponto de, não satisfeito com as próprias, aparecer lá, reclamando – extraviando uma vez mais – a lembrança de outra pessoa.
Fui pra casa pensando nos esquecidos: na mulher que não voltou, no menino longínquo. Fico comovida com coisas esquecidas. E com pessoas. Quando falo de pessoas, estou falando das duas: daquela que se esquece e daquela que é esquecida por alguém. O ar, afinal, é sempre o mesmo: ar de exilado, de quem não pertence. Minha amiga um dia me falou sobre a fotografia encontrada numa caçamba de lixo, a de uma bela jovem que sorria entre os detritos, profundamente inadequada. Essa amiga me contou, que junto com outros amigos, passou a noite elaborando teorias a respeito da desconhecida – a que sorria, insistente, como se zombasse do próprio abandono. Que amor devastado teria sido responsável por deixarem-na ali, no meio das coisas descartadas, alheia e desprotegida, exilando-a e exilando-se dela? Minha amiga passou uma noite pensando nos motivos do abandono; eu estou há quase dois anos pensando nos sapatinhos e na mulher que não voltou.
Primeiro que não compreendo as pessoas que não voltam. Acho triste. Penso sempre que alguma coisa séria aconteceu: porque as pessoas não podem simplesmente não voltar. Fomos feitos pra voltar. O que somos, afinal, senão carne, ossos e memória? Por isso, essa mulher, a mulher que não voltou, me espanta tanto. Vamos imaginar então, a princípio, que ela por algum motivo concreto não pôde retornar: precisou mudar de cidade ou país às pressas; sofreu um acidente que a tenha comprometido em algum nível neurológico; morreu repentinamente. A impossibilidade de voltar, eu entendo. E, nesse caso, é simbólico que tenha deixado pra trás um par de sapatos, esses fabricantes de rastros – os que, encerrados em moldura-caixa, não vão mais a lugar algum: antes, detêm-se calados, cravados na parede da casa como na da memória, protegidos (com vidro delicado) da poeira do tempo. Fixos. Penso se, nesse caso, não seria a mulher que não voltou uma lembrança distante na história desses sapatinhos, em vez do contrário, já que ela foi capaz de partir (para longe, para sempre); eles, não. Não são as lembranças que partem de nós, que partem para sempre?
É engraçado pensar em sapatos imóveis: mais ainda, em sapatos de criança, feitos que são para explorar caminhos. Fico pensando que longa estrada esses pequenos mocassins percorreram até voltarem a seu ponto de partida, o de estarem à espera, dentro de uma caixa. Como eu disse, não consegui decifrar o tempo a que pertencem, só está claro que não é o de agora nem o de trinta anos atrás, de modo que podem ter pertencido tanto a um filho quanto a um irmão ou até ao pai da mulher que não voltou. E fico aqui me perguntando que poderosas recordações – boas ou ruins? – terão evocado nessa que partiu sem eles (ainda que antes de partir tenha querido fixá-los para sempre, com martelo e prego na sala de estar)? A não ser – e aqui entra minha outra teoria – que a vontade desta senhora tenha sido não a de proteger essa lembrança, não a de guardar, mas a de encerrar, a de prender. E que, portanto, o abandono tenha sido uma intenção e o esquecimento, um projeto.
Soube essa semana, aliás, que realmente existem essas pessoas: as que fazem do esquecimento um projeto. E que há, inclusive, empresas no Japão especializadas em abandonos. Outra amiga (não a que contou sobre a fotografia na caçamba) me enviou uma matéria sobre essa gente, uma gente que paga para desaparecer, para desertar da própria vida, do trabalho, da família, e começar do zero em outro lugar. Essa operação tem até um nome, chama-se “jouhatsu”, que significa “evaporação” em japonês. Minha amiga achou essa história tão espantosa, tão com cara de literatura, de literatura disfarçada de realidade, que disse que lembrou de mim, e me mandou. Também eu fiquei pasma com essa institucionalização do abandono, sobretudo porque estava escrevendo justamente sobre isso, sobre as pessoas que não voltam. Segundo as empresas, os motivos que levam uma pessoa a não voltar são os mais variados: fugir de um casamento sem amor, de uma dívida, de uma decepção. Assim, não me parece tão difícil imaginar que alguém possa fugir de uma lembrança, de uma lembrança insuportável, como a mulher de que estamos falando. E ainda que essa matéria fale especificamente a respeito de uma prática recorrente no outro lado do mundo, no lado avesso, ler sobre isso fortaleceu ainda mais minha segunda teoria, a do esquecimento intencional.
É evidente que há esquecimentos involuntários, milhões. Mas não consigo acreditar que uma lembrança dessas, que tenha merecido, em algum momento, a cortesia de uma moldura e, assim, de um espaço na parede da sala de estar, possa ser apagada de uma maneira tão ordinária, e por tanto tempo. Então trabalhemos brevemente com a hipótese desse esquecimento planejado: um abandono elegante, de ordem muito diferente do abandono passional e desorganizado (eu diria quase violento) que surpreendeu minha amiga, numa caçamba de lixo. O abandono dos sapatinhos de couro foi um abandono delicado, respeitoso: de um tipo que não quer destruir, só afastar. Posso ver essa senhora partindo das “Molduras Paris”, sem intenção alguma de voltar, aliviada de ter encontrado onde deixar o peso de sua recordação – a evidência de algum sofrimento muito íntimo, que sequer imaginamos –, devidamente isolada em moldura-caixa, pronta pra virar uma lembrança estática, uma lembrança adotada por outras pessoas que, talvez, sem saber de seu peso, a pendurem na sala de estar (ou na parede da loja).
Nesses quatro anos a que, junto com Thiago, me dedico a resgatar memórias alheias – das caçambas de lixo, das calçadas, das casas subitamente vazias e, principalmente, dos herdeiros indiferentes – nunca havia parado pra pensar com calma nos esquecimentos voluntários, essa modalidade estranha (mas compreensível) de se desfazer daquilo que nos machuca, da bela jovem que, do criado-mudo, nos sorri eternamente: inconvenientemente feliz, mesmo diante de nossa saudade mais profunda e de nossa dor. E aí que, de repente, por um breve momento, posso compreender a mulher que não voltou: voltar exige refazer caminhos, rever paisagens, repetir sensações; voltar exige certa disposição, as pernas cansadas do esforço da ida. O passado, afinal, é esse lugar de onde continuamente já partimos e há pessoas que, cansadas ou aborrecidas da estrada, simplesmente escolhem não voltar: há dessas pessoas, que não voltam.
Eu volto. Até mesmo pelas lembranças dos outros. Por isso estou aqui, dedicando-me a escrever um texto sobre a mulher que não voltou, dedicando-me a entender o mistério dos sapatinhos esquecidos na “Loja das Molduras Paris”, perdidos entre as novidades, frágeis em sua caixa de vidro comum (tão menos resistente que os vidros temperados dos boxes ao redor). Enquanto a dona da loja me conta essa história, aproximo-me deles para ver os detalhes – a cor desbotada, as marcas no couro, a palmilha gasta – e me surpreendo com meu próprio rosto refletido no vidro: como se, de repente, nesse estreito espaço de tempo em que nos misturamos, em que nos confundimos, esses sapatinhos – os sapatinhos abandonados – fizessem parte de mim. Foi por um brevíssimo momento, até que eu – reflexo passageiro – tive que me virar para ir embora. Sim, houve esse segundo (e eu penso nele agora) em que, diante dos sapatinhos, eu fui a mulher que partiu, a mulher que, até então, não voltou. Fico triste ao constatar o inesperado: que, de vez em quando e à minha revelia, também eu posso ser a mulher que – levada pela vida – não volta. A mulher que evaporou.
Sensação
Vento
Umidade