As dimensões do breveMarília Bonna está em algum lugar entre o Rio de Janeiro – onde nasceu – e o Mato Grosso, onde foi criada. Habituada a fronteiras, gosta de estar entre a imaginação e a realidade. Por isso escolheu estudar Literatura, tornando-se mestre em Estudos Literários pela UFMT e leitora inesgotável, continuamente dividida entre aquilo que existe e aquilo que deveria existir. Adotou também o ofício de livreira, que exerce no Sebo Rua Antiga em Cuiabá, fundado por ela e seu companheiro, Thiago Iusso
Para Santiago, meu pequeno estrangeiro.
Uma vez um amigo – poeta, baiano – apaixonou-se por uma bailarina russa que estava de férias no Rio. Lembro de ir à sua dramática despedida do Brasil, onde deixou tudo: o emprego; um livro de poesia na gráfica; a irmã, que estava sob seus cuidados na cidade; e os amigos – que, na pequena sala de seu apartamento no Flamengo, circulavam desajeitados diante de tamanho romantismo, de tamanha ingenuidade, num homem com seus 37 anos e um casamento desfeito. No meio dos desajeitados, eu olhava para o casal não com o constrangimento da admiração (ou da inveja dessa capacidade – que não tenho – de amar subitamente), mas com o constrangimento da pena: uma pena inexplicável, que só fui elaborar mais tarde, quando me lembrei da cena desoladora de meu amigo tendo que nos explicar sua decisão, falar sobre seus sentimentos, em inglês (a única língua em que o casal podia se comunicar), para que ela não ficasse de fora da conversa. Achei isso profundamente triste, sobretudo para um poeta.
Os dois – eu fiquei pensando – tiveram que trocar juras de amor em inglês, essa língua de todo mundo e de (quase) ninguém; esse caminho do meio; essa superfície. Como é que a gente conta o que sente em inglês? Como é que a gente sofre; que a gente faz as pazes; que a gente fala sobre a nossa avó, sobre como era a casa da nossa avó (e uma pessoa não conhece realmente outra se nunca ouviu falar de uma avó). Como é que se conversa sobre coisas profundas – como os sentimentos – numa língua que não é a nossa? Eu lembro de Clarice. Ela disse algo tão bonito: que gostaria de não ter aprendido outras línguas para que a abordagem dela no português fosse virgem, fosse límpida; que gostaria de segurar a língua portuguesa com as mãos, dominá-la. Também penso que explorar uma só língua é trabalho para a vida toda. Talvez por isso nunca tenha me dedicado de verdade a aprender outra: porque – eu sempre soube – a língua estrangeira não é uma coisa que se aprenda. Digo, que se aprenda de verdade, intimamente: a tal ponto que se possa sofrer nela. Ou, não sei, sentir saudade.
Ela tem qualquer coisa que nos escapa, a língua do outro. Qualquer coisa secreta, qualquer coisa interdita. Lembro de pensar na época: que triste ser poeta na Rússia (claro, se você não for russo). E de imaginar meu amigo perdido entre os de língua estranha, menos (ou mais?) poeta que nunca. Um ano depois ele estava de volta, sem um único poema e sem a bailarina russa. É importante que saibam que, ao chegar, lançou enfim o livro que deixou na gráfica e mais três desde então.
Uma das minhas crônicas preferidas de Rubem Braga fala um pouco sobre isso, sobre a língua outra. Chama-se “A que partiu” e nela o cronista mais lírico do Brasil conta o que se passou quando chegou a Paris, com seu francês de iniciante, e resolveu telefonar para a única conhecida brasileira que morava lá, a fim de que pudessem se encontrar: a voz que atendeu ao telefone disse a ele que ela não estava, que havia partido (“Elle n’est pás là, monsieur. Elle est partie”) e diante desta frase brusca, inesperada, Braga sentiu-se profundamente solitário, abandonado em país estranho pela mulher que partiu, imaginando-a vagamente perdida em uma cidade distante, “talvez em alguma estação da Irlanda ou em algum hall de hotel da Espanha”; imaginando-a desorientada como imaginei meu amigo no frio de Moscou. Sua desolação, porém, foi interrompida meia hora depois, quando a conhecida – que havia recebido o recado de sua chamada – retornou o telefonema como se nada tivesse acontecido, como se nunca tivesse partido, a não ser (ela explicou) para fazer umas compras no centro da cidade. A culpa era do verbo, do nosso verbo, concluiu o cronista, “com seu ar romântico e estúpido”. Mas eu acho o contrário, Braga, a culpa é do verbo deles – com seu triste ar trivial. A culpa é da língua estranha.
Também da língua estranha é a culpa de eu andar sumida desta coluna. Por isso, aliás, é que estou aqui, escrevendo sobre poetas silenciosos na Rússia e mulheres que partem na França. Porque, de repente, tudo o que fiz nos últimos três meses foi me sentir como que desamparada em Moscou ou perdida numa estação da Irlanda, diante da língua mais estranha de todas: a deste pequeno estrangeiro que, numa tarde de novembro – tarde de tempestade – saiu de dentro de mim, o lugar mais longínquo, mais inalcançável, mais estranho do mundo. E eu, que nunca tentei de fato aprender outra língua, passo os dias numa dedicação infinita para conseguir me comunicar com ele, para compreender seu idioma inacessível, de lugar nenhum e de todos os lugares: mais desesperada, imagino, do que meu amigo – o poeta, o baiano – tentando entender, em sua última conversa com a bailarina, como o amor acaba em russo. Ou em inglês.
Quanto a mim, faço o caminho contrário, procurando entender como é que o amor começa: não na áspera língua eslava; não na poética língua francesa – que usa um verbo tão intenso como “partir” para falar sobre aqueles que vão até a esquina e voltam (como se partir não fosse definitivo, como se qualquer frase deles simplesmente precisasse ser bonita); mas na obscura língua daqueles que não falam, feita basicamente de olhos e de lágrimas e de sons indecifráveis. E de gritos: que ferem as noites, os ouvidos, o coração, o orgulho. E de dores ignoradas, que doem mais em mim, estou certa, do que nele (Tenho a impressão de que as palavras têm a controversa capacidade de aumentar as dores).
E pensar que um dia achei triste um poeta baiano e uma bailarina russa precisarem trocar juras em inglês. Eu, que tenho passado o tempo tentando fazer o mesmo em língua alheia, em patéticas pantomimas de amor, e sob o olhar interrogativo do forasteiro de dentro. Como se não fosse ridículo o bastante querer falar de sentimento para aquele que veio de dentro de mim, que veio, portanto, do lugar dos sentimentos, dos meus sentimentos; com aquele que já sabe de tudo.
Foi assim, sem palavras, que passei esses três meses, que passei todos os domingos em que devia estar aqui escrevendo. Todos os domingos em que eu mesma pensei que não fosse voltar. Mas voltei.
Feito um poeta, desiludido de amor, regressando para a própria língua; feito uma mulher que, distraidamente, partisse em francês.
Sensação
Vento
Umidade