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Poesia do Cotidiano

A força das coisas frágeis

Há força maior que a daquilo que está prestes a (se) partir?

As dimensões do breve

As dimensões do breveMarília Bonna está em algum lugar entre o Rio de Janeiro – onde nasceu – e o Mato Grosso, onde foi criada. Habituada a fronteiras, gosta de estar entre a imaginação e a realidade. Por isso escolheu estudar Literatura, tornando-se mestre em Estudos Literários pela UFMT e leitora inesgotável, continuamente dividida entre aquilo que existe e aquilo que deveria existir. Adotou também o ofício de livreira, que exerce no Sebo Rua Antiga em Cuiabá, fundado por ela e seu companheiro, Thiago Iusso

16/05/2021 10h38Atualizado há 4 anos
Por: Marília Bonna
Fonte: Marília Bonna
Imagem: Mister Blick via Pinterest
Imagem: Mister Blick via Pinterest

Numa ocasião, elogiei a fragilidade de uma amiga e ela ficou um pouco ferida, porque – ela me disse – se queria forte. Como se a fragilidade não fosse, afinal, a coisa mais forte do mundo. Há força maior que a daquilo que parece prestes a (se) partir; daquilo que parece vacilar entre nosso mundo – firme, claro, eterno – e outro, ignorado? Trabalhando com a memória (uma indecisão; um guardar e rejeitar), tive a sorte de conviver de perto com essa ambiguidade, de estar sempre diante dessa magnífica fronteira: entre a memória em sua imensa fragilidade e a memória em sua força imensa.

Quando esteve na Rua Antiga, a Mariana – uma menina que eu não conhecia até então – me contou sobre sua avó, que foi perdendo a memória aos poucos até chegar ao triste ponto de esquecer a morte do marido, só para receber a trágica notícia mil vezes – como se fosse um tiro (como se fossem mil tiros) – toda tarde em que estranhava a demora dele pro almoço. Quando ela também se foi, muitos anos depois, e a família começou a desfazer a casa, encontraram nas páginas de sua bíblia, como pequenas orações extraviadas, bilhetes que deixava para si mesma e que diziam coisas como: “Eu me chamo Judith” (esse é um nome inventado, esqueci de anotar o nome dela); “Tenho duas filhas e elas se chamam isso e aquilo”; “Meu marido partiu”; e outras coisas que viessem lembrar a memória de sua infinita vulnerabilidade. O que me encanta nessa história é a certeza que Judith tinha de não se esquecer do livro da Bíblia, um objeto, quando se esquecia continuamente do próprio nome e de quem eram seus pais, seus filhos, ela mesma; quando se esquecia que seu marido era uma ausência. E as ausências não se atrasam para o almoço.

Essa resistência da memória para certas lembranças aleatórias e “menores” me faz pensar na flor de Drummond, que fura o asfalto, o tédio, o nojo, o ódio; na flor de Drummond que fura certezas, que atravessa qualquer coisa, por mais profunda e maciça e eterna queeela seja. Houve um tempo, antes do tempo das partidas, em que as histórias dessas pequenas insistências me chegavam constantemente ali na Rua Antiga e eu ficava maravilhada com a vida (na verdade, com a capacidade de vida). É o caso da história do tio da Brunna, que – internado num asilo e sem reconhecer as pessoas mais íntimas – pergunta, em todas as visitas e infalivelmente, por seu fusca verde, paixão da vida inteira. Ele não se lembra da mãe ou da irmã, mas se lembra do fusca; mas se lembra da cor do fusca. Ou a da senhorinha, velhíssima, na casa da qual fomos olhar LPs e que caminhava pelos cômodos feito um fantasma – tão magra, tão alheia, tão distante de tudo –, mas que quando nos viu carregar seus discos, que o filho estava nos vendendo, perguntou desesperada – a voz tão tênue – aonde íamos levá-los e o porquê. Isso partiu meu coração, sobretudo quando o filho nos mandou ignorá-la. Até hoje me lamento ter trazido os discos, ter trazido muito provavelmente o único fio que, no momento, ligava aquela mulher à própria vida. E pensar que muitos anos depois que ela partir, seus discos ainda tocarão, inocentes, na vitrola e na vida de outra pessoa; pensar que o vinil, esse material que derrete com o simples fato de ser submetido ao calor do sol por alguns minutos, é mais resistente que a nossa existência.

Como o papel, em sua insuperável fragilidade de substância vegetal; o papel que me chegou inesperadamente, dentro de um livro de Guimarães Rosa: a carta de amor de um Otávio para uma Márcia, escrita em 1977 – amarela, arrebatada, tão bonita que chegava a ser ridícula – e que acabou me distraindo por um momento do comovente amor de Riobaldo. Um romance dentro do romance: as veredas do Grande Sertão. Escrita há mais de quarenta anos, essa carta ficou ali perdida e me levou a pensar que possivelmente tenha durado muito mais que o amor de Márcia e Otávio; que –  feita de papel e sujeita à umidade, ao esquecimento, ao rancor –  ela foi capaz de sobreviver a um sentimento presumivelmente inesgotável. As cartas duram mais que os sentimentos. As cartas, como os discos de vinil e a despeito de sua efemeridade, duram mais, às vezes muito mais, que as pessoas.

E aí a gente pensa: o papel, finíssima existência, em sua eterna iminência de voar, de se perder e amassar e rasgar e molhar; e o corpo – concreto, espesso, real – feito de ossos, essa matéria indestrutível. Qual deles é o mais frágil, afinal? Qual deles tem maior capacidade de ficar, e fica? Como a flor de Drummond, que rompe tudo – asfalto, tédio, tempo. Como a flor de Drummond, inexplicavelmente obstinada, inexplicavelmente delicada entre os escombros. 

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