As dimensões do breveMarília Bonna está em algum lugar entre o Rio de Janeiro – onde nasceu – e o Mato Grosso, onde foi criada. Habituada a fronteiras, gosta de estar entre a imaginação e a realidade. Por isso escolheu estudar Literatura, tornando-se mestre em Estudos Literários pela UFMT e leitora inesgotável, continuamente dividida entre aquilo que existe e aquilo que deveria existir. Adotou também o ofício de livreira, que exerce no Sebo Rua Antiga em Cuiabá, fundado por ela e seu companheiro, Thiago Iusso
1. Em 1969, o escritor mineiro Paulo Mendes Campos fez uma relação de Pequenas Ternuras, só cometidas - segundo ele - por pessoas que, embora pareçam livres como as demais, estão presas na "grande armadilha terrestre" dos amores; estão condenadas a sentir. Entre essas pessoas, "quem coleciona selos para o sobrinho"; "quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz"; "quem se impressiona com os transatlânticos ou com os olhos dos animais ferozes" e - minha preferida - "quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo".
2. Considerado o pai da astronomia observacional, porque foi quem aprimorou o telescópio com as próprias mãos - e por isso descobriu que estrelas morrem, que o céu se transforma e também que há várias luas orbitando Júpiter - Galileu Galilei deixou, entre seus papéis desordenados, uma lista de compras datada de 1609, onde há, entre outras coisas: "Sapatos e chapéu para o Vincenzo"; "Açúcar, pimenta, cravo, canela, especiarias, geleias"; "Lentilha, grão-de-bico, arroz, uva-passa"; "Sabão, laranjas"; "Dois pentes de marfim"; "Tubo de estanho para órgão"; "Lentes alemãs polidas" e "Pedaços de espelho" (um ano depois ele apresentaria ao mundo um telescópio, feito por ele, com capacidade de ampliação de trinta vezes). Não é espantoso que um homem que passava tanto tempo olhando para o céu - a ponto de perceber que as estrelas ficam mais brilhantes quando estão morrendo - também compre sabão e laranja, também coma grãos-de-bico?
3. No outono de 2018, descobri por acaso, no meio de uma conversa cotidiana, que Elisa - uma amiga bem próxima - tem o estranho hábito de fazer listas para tudo, inclusive para eventos imaginários, festas e viagens que - ela sabe - jamais acontecerão. Estas listas, Elisa me contou, são meticulosas e dão conta, por exemplo, das cores dos balões, dos drinques, e do número exato e dos nomes completos dos convidados da festa que não haverá. Fiquei maravilhada por estar tão perto de alguém que cria comemorações secretas, como se dotada de uma capacidade única de inventar a própria felicidade. Desde então - quando penso nela, quando alguém fala sobre ela -, imagino-a dançando em salões impossíveis e me sinto como se guardasse um segredo, que - talvez, quem sabe? - seja o segredo da vida.
4. Robert Boyle foi um Filósofo Natural (como se chamavam os cientistas antes de existir essa palavra), conhecido como um dos fundadores da Química Moderna, que escreveu, em 1662, uma lista de desejos - coisas que ele esperava que fossem resolvidas pela ciência algum dia, entre elas: "A arte de voar"; "A arte de permanecer durante muito tempo embaixo da água e ali funcionar livremente"; "A cura de doenças à distância ou pelo menos através de transplantação" e "Drogas poderosas para alterar ou aumentar a imaginação, a vigília, a memória e outras funções, bem como para aliviar a dor". Trezentos anos depois, aqui estamos: voando como impassíveis pássaros mecânicos; nadando como estranhos peixes que precisam subir à superfície a cada dois dias, mas que depois podem descer de novo e quantas vezes quisermos; andando por aí com corações alheios (e pulmões e músculos e ossos e até veias e artérias); evitando solenemente todas as dores que podemos (e as que não podemos), prontos para cultivar todas as formas de insensibilidade. É extraordinária a grandeza - os três séculos - da imaginação de Boyle, tamanha capacidade de fantasia.
5. Num lugar e tempo remotíssimos - o Japão do século X -, onde a poesia era tão (mas tão) importante que as pessoas tinham o estranho hábito de conversar através de poemas, uma mulher escreve um diário, que atravessando mais de dez séculos e mil montanhas e mares e terras, eu li aqui, no Mato Grosso do século XXI, admirada. Chama-se Sei Shônagon e seu "O livro do travesseiro", conforme ela mesma o batizou, é quase que unicamente um compilado de listas poéticas, feitas ao longo de sua vida e cuja intenção - me parece - é enredar-se, de alguma maneira, no tempo: é ficar. Nada passa por ela que não seja documentado: estão ali todas as águas profundas que visitou e as que mais gosta; estão ali os pássaros preferidos; as árvores não frutíferas que acha mais bonitas; as doenças favoritas, que ou já teve ou já ouviu falar. Estão ali, por exemplo, listas com os belíssimos nomes: "Coisas que perturbam", cujo primeiro item é: "Uma carruagem de boi tombada. Uma coisa assim tão grande faz qualquer pessoa supor que ela é pesada e estável, e perturba e desaponta ao fazer sentir ser tudo apenas sonho"; "Coisas distantes que parecem próximas", onde ela escreveu: "O Paraíso. A travessia de um barco. A relação entre um homem e uma mulher"; "Coisas que simplesmente passam": "O barco à vela. A idade das pessoas. A primavera, o verão, o outono, o inverno".
Mas há coisas simplesmente feitas para não passarem. Há coisas que precisam ficar. Entre papéis desordenados, em cadernos de infância ou diários remotos, há coisas que ficam. E eu guardo.
Sensação
Vento
Umidade