Quando ainda morava na comunidade Aricazinho, às margens do Córrego Água Limpa e na região do bairro Pedra 90, em Cuiabá, Eulália da Silva Soares, que mais tarde ficaria conhecida como Dona Eulália, perdeu o pai e, aos cinco anos, precisou ajudar a mãe na roça.
Com 12, a primogênita entre três irmãos, para contribuir ainda mais com o sustento da família, decidiu usar o leite produzido na propriedade para preparar doce de leite no fogão à lenha. Mais de duas décadas depois, movida pela necessidade de sustentar os filhos, Dona Eulália repetiu o instinto de sobrevivência ao preparar as primeiras receitas de bolo de arroz.
O ano era 1958 e a quituteira, morando no número 470 da rua Professor João Félix, no bairro Lixeira, em Cuiabá, já dava os primeiros passos na criação do Eulália e Família, onde durante 66 anos acompanhou a movimentação de fregueses até falecer na segunda-feira (28), na UTI do Hospital Jardim Cuiabá, após ter duas paradas cardíacas.
Quando pensou que poderia vender o bolo de arroz para ajudar o marido, o pedreiro Eurico Avelino Soares, que faleceu há sete anos, aos 96, e contribuir com a renda da família, Dona Eulália lembrou da receita que era feita por uma de suas tias, conhecida como “Sinharinha”. A secretária Danielle Soares, de 46 anos, conta que o avô construiu o primeiro forno a lenha no quintal da casa para que os primeiros bolinhos pudessem ser assados.
“Ela foi lembrando da receita e fez os primeiros bolos de arroz, meu avô ajudava a socar o arroz, os dois acordavam ainda de madrugada para fazer. Depois ela começou a pedir para alguns meninos entregarem nas ruas, eles comiam mais que entregavam”, se diverte a neta. “Lembro que todo mundo tinha que ajudar a socar o arroz”.
Danielle ainda tenta assimilar a ausência da avó no quintal da casa no bairro Lixeira, onde, desde que nasceu, aprendeu a conviver com a movimentação de fregueses do Eulália e Família que iam em busca dos bolos de arroz e de queijo, que entrou mais tarde no cardápio.
Orgulhosa, ela aponta para uma das fotos no mural de entrada do café antes de contar que foi a responsável por escrever em um cartaz: “Temos bolos: terças-feiras, sábados, domingos e feriados. R$ 1”.
A Festa de São Benedito, padroeiro dos cozinheiros, teve papel importante na demanda de bolos de arroz produzidos por Dona Eulália. Em um dos vídeos que a neta guarda no álbum de fotos do celular, a própria cozinheira conta como a produção chegou a mais de 7 mil unidades.
“Comecei a fazer de pouquinho, no domingo, tinha aquelas pessoas que compravam, mas tudo de pouquinho. Foi indo, foi indo, foi aumentando... Aí tinha a Festa de São Benedito, eu doava um pouco e fazia outro pouco que eles compravam para vender no final de semana da festa. Esse aí foi indo, foi aumentando, foi aumentando. Cheguei a fazer 7 mil bolos no dia de festa, não dava conta. Era muito”, diz Eulália durante uma conversa em que mergulha nas
lembranças ao lado de Danielle.
Danielle também lembra que, de maneira improvisada, a avó começou a colocar uma garrafa de café e vender os bolos de arroz após a missa na Igreja do Rosário e São Benedito, que fica a 700 metros do Eulália e Família. Não demorou para que o bolo de arroz se tornasse tradição entre os fieis que frequentavam as missas.
Preconceito na família do marido
Desde o início do namoro, Dona Eulália sofreu preconceito por parte da família do marido por ser uma mulher negra. Eurico era branco e filhos de pais brancos, mas no livro “Cuiabá de Eulália”, a cozinheira conta que o segundo marido da sogra era negro, fazendo com que as cunhadas carregassem a miscigenação no DNA, algo que não impediu o racismo. “Fui rejeitada e quando casei só uma tia dele que foi ao casamento”, expõe a cozinheira em uma das passagens da publicação em que revela ter cuidado de uma das cunhadas que sempre a tratou com desdém.
“[...] com câncer, e teve que ir ao médico com urgência. Nesta hora Eulália era a única que podia socorrê-la. Eulália confidencia que entre internações e altas da Santa Casa de Misericórdia, ela cuidou da cunhada por meses até o dia da sua morte. O funeral também foi pago com recursos do seu bolso. A cunhada nem teve tempo para reconhecer o seu cuidado. “Eu fiz tudo isso, mesmo sendo rejeitada, porque sei que Deus perdoa”, diz trecho do livro.
Os últimos dias de Dona Eulália
Apesar de não colocar mais “a mão na massa”, conta Danielle, a avó sempre estava de olho no andamento da produção, já que o café sempre funcionou na casa em que ela morava. Quando o marido morreu, há sete anos, Dona Eulália passou a morar sozinha na residência, apesar de nos últimos tempos, por conta das particularidades do envelhecimento, nunca ter passado uma noite sequer sem a companhia de alguém da família.
Antes de precisar ser levada para o hospital na segunda-feira (28), Dona Eulália sentiu uma dor aguda no sábado (26), mas estava fazendo tratamento em casa depois de passar por consulta médica. No entanto, horas antes de acionar o Samu para levar a avó para o Hospital Jardim Cuiabá, onde ela seria entubada e internada na UTI, Danielle se impressionou ao ver a cozinheira, sempre forte e corajosa, debilitada e sem conseguir se comunicar.
“Hoje tenho plena certeza que os rins dela já estavam entrando em falência”, explica a neta. “Quando chegamos no hospital, ela convulsionou, tive que sair da sala, me ajoelhei e comecei a chorar. Não lembrava a última vez que tinha chorado de desespero”.
Horas antes de receber a notícia de que a avó não tinha resistido após duas paradas cardíacas, Danielle se lembra de ter passado a tarde com a sensação de coração apertado. “Foi tudo muito rápido”, resume a neta.
Para se dividirem nos cuidados da matriarca da família, filhos, netos e bisnetos se revezavam em uma escala muito bem organizada. Na lista das pessoas que deveriam dormir com Dona Eulália aos domingos, por exemplo, já constavam os plantonistas de abril do ano que vem.
O cuidado foi algo natural para os familiares, que já haviam feito o mesmo por Eurico quando ele começou a precisar de mais cuidado por conta da idade avançada, conta Danielle. “Uma mãe cuida de dez filhos, mas às vezes 10 filhos não cuidam de uma mãe. Infelizmente algumas famílias encaram como um peso, para nós não foi assim, vovó foi amada até o último dia”.
Sensação
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