Ixcuta AquiLuciana Bonfim é jornalista, fundadora do site Notícias de Chapada, além de cantora e compositora cuiabana. Com experiência no cenário musical e paixão pela arte, ela conduz a coluna "Ixcuta Aqui", unindo seu olhar sensível e sua vivência para explorar o universo da música e do cinema com paixão.
Desde menina eu escuto Belchior, mas só quando tive pela primeira vez o coração rasgado a música dele começou a fazer sentido pra mim e entrou como “um sol no quintal”. Mas foi só depois de um show onde fui com uma turminha do teatro e da música de Cuiabá que comecei a me envolver em movimentos sociais e a entender que o que ele queria mesmo era “mudar as coisas” e que a música dele falava de política.
Belchior não tinha medo de meter o dedo na ferida dos problemas do mundo. Em "Sujeito de Sorte", ele nos dá uma ideia de resistência: "Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro". É sobre sobreviver em um sistema que nos esmaga, sobre insistir. Já em "Apenas um Rapaz Latino-Americano", ele deixa claro que a luta é coletiva, falando de identidade e pertencimento de uma forma que ecoa em cada canto da América Latina.
Em "Comentário a Respeito de John", ele denuncia a alienação e o escapismo em tempos de repressão: "Mas não se preocupe, meu amigo, com os horrores que eu lhe digo / Isso é somente uma canção / ao vivo é muito pior". E como esquecer "Divina Comédia Humana", onde ele mistura a tragédia de existir com a esperança? Ele cantava com uma urgência que atravessa gerações e nos lembra que é preciso agir, mesmo quando tudo parece perdido. Sempre desobedecer, nunca reverenciar!
Muitos anos de palco depois, eu senti uma urgência em cantar sua obra. Então fiz um show, com a ajuda e produção de uns amigos jornalistas Priscila Mendes, Túlio Paniago e Maria Clara, na Casa Cuiabana em 2019, quando a gente estava com muito medo da onda que se levantava.
No show, arrecadamos produtos de higiene para pessoas em situação de rua, “os humilhados dos parques com seus jornais”, sempre odiados, sempre invisibilizados e ainda hoje sendo banidos com uma grave e cruel tentativa de extermínio.
Alguns amigos não curtem muito meu amado rapaz latino-americano. Uma amiga já chegou a me dizer que acha a música dele “difícil”. E é mesmo. Digo mais: é intencional. Ele quer que o canto dele, feito faca, corte a carne da gente. E corta. Mesmo quando fala de amar profundamente, ele atira os incautos na mais densa dor.
Na última vez que tive meu coração partido (faz tempo, kkk), ele foi a trilha sonora das tardes lentas de domingo daquele romance. Eu pedia, deitada na rede: aumenta o som, gosto tanto dessa... E vinham "Paralelas", com aquele amor que cruza estradas e vidas; "Todo Sujo de Batom", sobre um coração perdido nos vestígios de um beijo; ou ainda "Fotografia 3x4", que traduz a saudade e os sentimentos de um amor marcado pelo tempo. Belchior sabia falar de amor com profundidade, intenso que só ele, segurando o coração da gente com as mãos, pronto pra esmagar.
Acho difícil você, caro leitor, nunca ter ouvido falar de Belchior. E se ainda não ouviu, corre pro seu streaming e deixa tocar alto a discografia deste homem: intenso, questionador, transgressor, que só queria amar e mudar as coisas.
Sensação
Vento
Umidade