O outro ladoApanhado de informações e análises sobre o que a grande mídia nacional e internacional não divulga, apresentadas em forma de artigos.
Esta manhã, eu estava a caminho do norte de Gaza, percorrendo as veias lentas e destruídas de uma cidade que não se lembra como respirar. O carro avançava com dificuldade, pressionado pelo silêncio dos que estavam dentro dele e pela dor de uma terra demasiado familiarizada com o luto. Eu não estava sozinho — dois estavam na frente, e ao meu lado, no banco de trás, outros dois se inclinavam na quietude da viagem.
Mal havíamos passado por um grupo de pessoas — rostos que nunca conheceria — quando o céu se partiu.
Uma explosão irrompeu sem aviso. Não foi apenas um som. Foi uma força que rasgou o ar e reescreveu a realidade em um instante. Meus ouvidos zumbiam violentamente, como se algo dentro deles tivesse estourado. A fumaça engoliu o mundo. Eu não conseguia ver. Não conseguia pensar. Só o instinto permaneceu.
O carro foi jogado para frente de repente. Tinha sido atingido. A traseira estava destruída, os vidros estilhaçados. O gosto metálico de poeira e sangue encheu minha boca. Ao meu redor, o caos tomava forma em cor: vermelho. Sangue por toda parte. Nos vidros. Nos bancos. Em mim. Os homens ao meu lado estavam feridos — um desmaiado, o outro se contorcendo. O motorista também estava machucado. E o passageiro ao lado dele.
Eu gritei — um grito cru, desesperado, incrédulo.
“Vocês estão bem? Alguém se machucou?”
Mas eu já sabia a resposta.
Eu deveria ter me verificado. Deveria ter me perguntado se ainda estava inteiro. Mas, em vez disso, peguei o pequeno kit médico preso à minha cintura. Minhas mãos trabalharam no piloto automático, puxando gaze, pressionando feridas, sussurrando palavras frenéticas para os que mal estavam conscientes.
Chegamos a um hospital próximo — apenas algumas centenas de metros de distância, mas parecia outro mundo. Saímos cambaleando, encharcados de sangue e terror. Dentro do hospital, não encontrei alívio, mas mais devastação. Mais corpos. Mais gritos. Os feridos não paravam de chegar. Os mortos também. Comecei a documentar. A ajudar. A fazer qualquer coisa, menos desmoronar.
Foi horrível. Indizível.
E eu sobrevivi. De novo.
Esta foi a décima primeira vez. Onze vezes que voltei da beira [da morte] desde que esta guerra começou. Onze vezes em que ganhei um sopro de vida enquanto outros tiveram o seu roubado.
Eu me pergunto como.
Como ainda estou vivo, quando tantos não estão?
Quantas vezes mais vou poder fazer essa pergunta?
Eu já não durmo — apenas caio em pesadelos disfarçados de descanso. Todo sonho é banhado em fogo e sirenes. Cada batida do meu coração ecoa os gritos que ouvi e os que tentei calar.
Hoje, eu estava apenas a caminho do trabalho — para documentar as vidas destroçadas que restam. Mas a história que eu buscava se tornou a minha. De novo.
E eu não sei mais como carregá-la.
*Abdulruhman Ismail é um jornalista e fotógrafo palestino em Gaza de 22 anos. Para acompanhar sua cobertura do genocídio em inglês, acesse o Instagram e X.
**Tradução de Bárbara Rosa
Sensação
Vento
Umidade